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Gestantes

Esta seção vai ajudar as gestantes a entenderem melhor o milagre da gravidez

Plantão Médico – Sangue ruim

O grande e movimentado berçário da Maternidade Bom Parto ficava no sexto andar, ocupando quase toda a área disponível. Por ali passavam mensalmente cerca de mil recém-nascidos! As funcionárias trabalhavam em ritmo acelerado, para dar conta de cuidar de tantos bebês.

Atualmente, com o sistema de alojamento conjunto, tudo ficou mais simples. Os bebês sadios ficam junto da mãe todo o tempo, e só vão para o berçário em situações especiais. As mães são responsáveis pelo banho, pelas trocas de fraldas e demais cuidados. Mas às berçaristas cabe ajudar as mães nessas tarefas, quando solicitadas, inclusive ensinando e apoiando as mães na amamentação.

Trabalho, portanto, não faltava. Uma tarefa de grande responsabilidade.

Enquanto trabalhavam, dando banho, trocando, vestindo os bebês e entregando para seus familiares, as funcionárias conversavam. Uma delas, veterana, aconselhava as mais jovens que estavam no plantão.

-“Aqui, todo cuidado é pouco, é preciso muita atenção e concentração no que se está fazendo. Basta um descuido… E muita atenção na hora de entregar um bebê ao pai ou familiar, tenham certeza de que estão entregando o bebê certo para a pessoa certa. Vocês conhecem a Jacirema, berçarista do plantão da noite, que já se aposentou,? Vocês sabem o que aconteceu com ela, há muitos anos?”

* * * * *

Naquela época a Jacirema trabalhava em num hospital simples, de periferia. Tudo aconteceu em uma manhã de domingo.

Parado em frente à janela envidraçada do berçário, Agnaldo observava em silêncio seu filho. Prematuro, nascido há poucos dias, o bebê estava na incubadora, onde respirava com dificuldade. O tórax do pequenino se movia para cima e para baixo rapidamente, fazendo um sulco na divisão com o abdômen a cada respiração. Suas narinas se dilatavam na tentativa de obter mais oxigênio. O menino estava correndo sério risco de vida.

Embora grave e dramática, era uma situação comum, não fosse por um detalhe. Agnaldo era “sangue-ruim”. Bandido perigoso, traficante, com vários homicídios cometidos e ainda impunes. Morava em uma palafita, no bairro da maré, como era conhecido aquele aglomerado de barracos imundos fincados sobre o mar.

Quem o visse ali, olhando com preocupação seu bebê, pensaria tratar-se apenas de mais um pai angustiado com a saúde de seu filho. Ninguém poderia imaginar as terríveis coisas que se passavam no coração e nos pensamentos de Agnaldo, nem do que ele era capaz.

* * * * *

Adriana ocupava um apartamento na ala de convênios da mesma maternidade. Seu parto havia sido uma cesariana, três dias antes. Funcionária pública municipal, seu modesto plano de saúde permitiu-lhe a regalia de ocupar uma acomodação diferenciada. Adriana não era rica, mas morava em um bom bairro da cidade, em uma casa sem luxo, porém ampla e confortável. Nela havia um quarto especialmente preparado para receber seu filho, todo decorado com motivos infantis.

É certo que o quarto que Adriana ocupava no hospital, não era grande coisa, tinha lá suas rachaduras e descascados na parede. Mas era melhor do que a enfermaria de cinco leitos onde estava a mulher de Agnaldo.

Ao lado de Adriana estava seu bebê, que havia nascido saudável. Recebia apenas os cuidados básicos, mamando somente o leite materno. O pediatra e o obstetra já haviam passado suas visitas e dado alta hospitalar para mãe e filho.

Junto com seus pais, Adriana aguardava para ir embora. Mas antes o bebê tinha que ir ao berçário, para tomar banho e ser trocado. Só que aos domingos, como se sabe, tudo é mais difícil.

Jacirema na ocasião era funcionária da ala de adultos, nunca havia trabalhado com bebês. Mas naquele dia foi deslocada para o berçário, para cobrir a falta de uma colega. Ela não ousou desobedecer à ordem da enfermeira encarregada do plantão. Afinal, conseguir emprego não estava fácil…

No berçário, Jacirema recebeu o bebê de Adriana, deu-lhe um banho, trocou a fralda e colocou uma roupa bem bonita que havia sido separada especialmente para a alta. Abriu a porta do berçário e deu de cara com Agnaldo ali parado. Pensando que ele fosse o marido de Adriana, Jacirema abriu um sorriso falso, tentando agradar e ao mesmo tempo esconder seu desagrado por estar trabalhando fora de sua área. Com o bebê nas mãos, estendeu os braços na direção de Agnaldo e disse:

-“Pronto, paizinho, aqui está o seu bebê! Lindo e perfumado, pode levar”.

Agnaldo, “sangue nos olhos”, não pensou duas vezes. Pegou o bebê no colo e foi embora do hospital. Sumiu.

* * * * * *

No apartamento, Adriana começou a se inquietar com a demora de seu bebê. Chamou uma funcionária, que a acalmou, disse que iria verificar e já voltaria. No berçário, constatou o engano.

Ao se dar conta do acontecido, Jacirema passou mal e teve de ser atendida no pronto socorro.

Temendo por um escândalo, a enfermeira encarregada resolveu tentar solucionar tudo em surdina. Verificou o endereço de Agnaldo na ficha hospitalar e mandou uma ambulância com dois funcionários para a casa dele. Se não conseguissem encontrá-lo, não haveria outro jeito, teriam de ir à polícia.

Enquanto isso, Adriana e sua família já estavam impacientes com a demora do bebê, porque tinham pressa para ir embora. Nem sequer pensavam na possibilidade de ter havido algum problema. Julgavam um absurdo a demora, já de mais de uma hora, para simples cuidados no berçário.

Munida de uma grande cara-de-pau, a enfermeira encarregada foi ao quarto e sorridente apresentou as explicações. Haviam nascido muitos bebês, havia muito trabalho a ser feito e por isso iria demorar ainda mais um pouco.

-“Mas tenham paciência, e não se preocupem!” – disse ela. –“ Seu bebê está em ótimas mãos!”.

As mãos de Agnaldo, bandido, homicida, paradeiro desconhecido…

* * * * *

Chegando ao bairro da maré, o motorista da ambulância olhou para aquele monte de palafitas. Verdadeiro paliteiro espetado num mar de detritos fedorentos que flutuavam sob os barracos. O mau cheiro podia ser sentido de longe. Mas não foi difícil localizar a “casa” de Agnaldo. Alguns moleques na entrada da favela indicaram onde ficava, afinal ambulância tem prioridade. Se fossem “os home” tudo seria diferente, ninguém sabe, ninguém viu…

Os dois homens bateram na porta da palafita. Autorizados pela voz grave que veio lá de dentro, entraram. Depararam-se com o bebê de Adriana deitado no chão, sobre um tapete imundo, dormindo. Pelas frestas das taboas do piso era possível ver a maré sob o barraco.

Deitado ao lado do bebê, estava Agnaldo, de bermudas, descalço e sem camisa, com uma pistola 45 ao alcance da mão. Ele abriu um sorriso sarcástico, olhou para o relógio no pulso e disse:

-“Eu estava só contando quanto tempo vocês iam demorar para chegar aqui. E tem o seguinte:”- emendou. –“Eu não cometi nenhum crime, a mocoronga lá do berçário me deu o bebê. Podem levar ele, mas eu não quero saber de polícia nem de BO, se não eu volto lá e mato vocês. E tem mais” – continuou, enquanto os dois pegavam o bebê do chão –“Se acontecer alguma coisa com o meu filho também vai ter morte!”

Os dois voltaram rapidamente para o hospital, onde entraram pelos fundos, disfarçando o menino dentro de um cesto. Foram direto para o berçário, onde o bebê tomou novo banho e trocou as fraldas já sujas.  Uma limpeza na roupinha de alta retirou os vestígios de sujeira. Por fim passaram-lhe perfume, para tirar aquele cheiro de miséria que já tinha começado a se entranhar.

E com apenas três horas de demora, voltou aos braços da família que o esperava ansiosamente. Adriana, que de nada suspeitou, foi embora feliz, agradecendo a todos pelos cuidados com ela e seu bebê.

Agnaldo, inabalável, continuou visitando o hospital, desafiante e ameaçador, até que seu filho teve alta. Por medo dele, de perder o emprego, ou dos dois, a enfermeira e os demais funcionários nunca falaram sobre o acontecido.

* * * * *

Agnaldo morreu baleado em um tiroteio com a polícia poucos anos depois. Seu filho esteve internado no mesmo hospital outras vezes, com desidratação, pneumonia e outras mazelas, mas sobreviveu. Hoje, adolescente, já é “do crime.” Seguiu os passos do pai, que se fosse vivo, teria orgulho dele. Já esteve até assaltando no bairro onde moram Adriana e sua família.

Quanto ao filho de Adriana, cresceu saudável e se tornou um bom garoto. Passeia bastante por toda a região, mas pensa que não conhece as palafitas do bairro da maré. Afinal, o que ele iria fazer naquele fim de mundo?

Nem ele nem sua família jamais souberam daquele passeio infernal.

E os nossos filhos? Será que já fizeram um passeio tenebroso como esse e nós nem desconfiamos?

Ruy do Amaral Pupo Filho
Pediatra, Sanitarista e Escritor

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