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Gestantes

Esta seção vai ajudar as gestantes a entenderem melhor o milagre da gravidez

Plantão Médico – Barra Pesada

Na sala dos médicos da Maternidade Bom Parto, a conversa prosseguia, agora entre os residentes de pediatria. O assunto ainda era o das trocas de bebês. –“Deus me livre”- dizia um deles –“tomo sempre todo cuidado para que isso não aconteça comigo. Acho que só a falta de atenção explica esses acontecimentos. Basta ficar sempre atento para evitar que isso ocorra.”

Um dos pediatras veteranos que estava na sala, assistindo televisão, mas com um ouvido na conversa, discordou, entrando no papo. -“Não é bem assim” – ele disse. Vocês conhecem o doutor Roberto, pediatra? Pois ele trabalhou uma época no interior, e teve um sério problema desse tipo. Aliás, essa não foi a única dificuldade que ele teve por lá. Vocês querem saber o que ele me contou? Então escutem, pois foi barra pesada…

* * * * *

Dr. Roberto não conseguia dormir. Virava-se sem parar de um lado para o outro na cama. Mas a preocupação que sentia causava-lhe tamanho mal estar que era impossível relaxar. Só de pensar no que o aguardava pela manhã, um suor frio corria pela sua testa.

Ele era o diretor do centro de saúde, em uma cidadezinha do interior. Até a véspera, sua vida corria normalmente, com todas as regalias de viver em uma localidade pacata. Seu trabalho dividia-se entre o posto de saúde e seu consultório, sempre bem movimentado. Nada mal para quem estava na cidade há poucos anos.

Ele ainda se recordava do seu primeiro dia de trabalho na cidade e do primeiro paciente que atendeu. Era um velhinho.

–“Tudo bem com você?” – perguntou ele para o homem, que veio da zona rural para a consulta. –“Não, doutor, eu passei a noite toda viajando!” – disse o paciente. –“Puxa vida, o senhor deve estar cansado!” – assustou-se o médico –“Você mora assim tão longe?” – prosseguiu, para espanto ainda maior do paciente.

Somente mais tarde, naquele dia, uma funcionária do posto de saúde esclareceu o doutor. –“Lá na roça” – disse ela –“os banheiros ficam fora das casas, bem distantes. São umas casinhas de madeira construídas sobre as fossas. Quando a pessoa vai ao banheiro, diz que vai viajar. E passar a noite viajando, significa que ela teve diarréia, foi várias vezes ao banheiro.” O doutor tinha muito que aprender sobre a cultura local. Coisas que ele não encontraria em nenhum livro de medicina…

Mas agora, olhando para o teto naquela madrugada de insônia e ansiedade, Dr. Roberto relembrava os acontecimentos da véspera. Era apenas mais dia, uma manhã modorrenta, como tantas outras. Até que alguém entrou correndo no centro de saúde, gritando a novidade que mudou sua vida para sempre:

-”A Polícia Federal deu uma batida na Santa Casa e prendeu em flagrante todos os médicos!”

Dr. Roberto não trabalhava lá, mas ouvia dizer, como toda a cidade, que falcatruas ocorriam no hospital. O esquema era simples e bem conhecido da população local. Era voz corrente que cada paciente, ao ser atendido, assinava duas fichas de procedimentos. Que depois eram preenchidas livremente pelo setor de “faturamento”. Uma verdadeira “máfia de branco”.

As fichas do INAMPS eram conhecidas popularmente como baú (sigla de boletim de atendimento de urgência). No caso, um verdadeiro baú da felicidade…

A novidade se espalhou e se transformou no assunto único em todas as esquinas, casas e botecos. –”E agora, como vai ficar o hospital, sem médicos?”- era a pergunta que todos faziam. A resposta começou a aparecer naquela tarde.

Dr. Roberto foi convocado para uma reunião de emergência com as autoridades. Presentes o prefeito, o padre e o delegado de polícia, entre outros. O prefeito, homem simples, porém um hábil político populista, bom de conversa, não teve dificuldades em encontrar os argumentos certos para “dobrar” o Dr. Roberto. Apelou para seu senso de justiça social, para seu compromisso com o bem-estar da população, para seu idealismo… Apesar de sua resistência, o Dr. Roberto foi convencido, pelo bem de todos, a assumir o hospital no dia seguinte. Conhecendo de antemão as dificuldades e precariedades da pequena Santa Casa, ele já tinha motivos de sobra para se preocupar.

Mas tudo piorou quando recebeu, no início daquela noite, um estranho telefonema, de uma pessoa intimamente ligada à “máfia de branco”. A voz soturna ao telefone o ameaçava, caso assumisse o hospital. E o Dr. Roberto tinha motivos para acreditar que o perigo fosse real, pois na cidade contava-se algumas histórias assustadoras sobre a autor da ligação.

Agora, revirando-se na cama, Dr. Roberto tinha de tomar sua decisão final. Assumir suas responsabilidades frente ao povo da cidade, ou “enfiar o rabo no meio das pernas…” –”Logo comigo!”- pensava ele, um homem honesto, de princípios, mas que não era nenhum modelo de coragem.

Pela manhã, insone, ele já havia decidido. Rumou para a Santa Casa.

Entrou no pequeno e simples hospital e se dirigiu à sala da administração. Lá chegando assumiu as funções de diretor clínico, chefe do berçário e da pediatria.

Um pouco mais tarde, ainda naquela manhã, Dr. Roberto estava em sua sala tentando administrar os graves problemas do hospital. Autoclave queimada, falta de equipamentos básicos e de pessoal qualificado, o trivial variado.

Imerso em tantos problemas, ele levou um susto quando a enfermeira-chefe Suzana entrou subitamente em sua sala, esbaforida, e falando apressada.

- “Dr. Roberto, aconteceu um problema muito sério na maternidade. Uma paciente, Maria, acabou de ter alta agora pela manhã. Mas saiu com o bebê errado! Foi por uma distração, a funcionária do berçário entregou a ela, por engano, o bebê da Joana, a paciente do leito ao lado!”

- “E a paciente que ficou, Joana, já sabe?” – perguntou ele.
- “Ainda não, ela está com o outro bebê no colo, olhando meio estranha, mas não falou nada” – respondeu a enfermeira.

Dr. Roberto não podia acreditar… com tantos problemas, uma troca de bebês, no seu primeiro dia! Mas logo pensou que talvez não fosse tão grave, já que o fato era bem recente e a cidade pequena, cerca de vinte mil habitantes. Era só localizar a casa da paciente, trazê-la ao hospital e destrocar as crianças.

Mas isso teria de ser feito rapidamente, antes que a paciente trocasse a primeira fralda ou amamentasse uma vez o bebê. Antes que ela criasse com ele um vínculo, que depois seria muito difícil de desfazer. Na época, não havia exame de DNA.

Mas não seria assim tão simples encontrá-la. Apesar da cidade ser bem pequena, o município tinha uma enorme área rural. Com centenas de quilômetros de estradas de terra, cheia de sítios e fazendas, onde residiam outros vinte mil habitantes. Inclusive, claro, a Maria.

- “Pois esse é o problema, doutor” – disse a enfermeira Suzana – “o endereço dela na ficha diz apenas sítio Barra Pesada, ninguém sabe onde fica!”

Mas o Dr. Roberto conhecia bem a população local e teve uma idéia.
- “Já sei, chame imediatamente aqui o motorista “Zezinho do táxi”, ele conhece todos os caminhos deste município!”

Em pouco tempo chegou o Zezinho que, de fato, tinha uma vaga idéia de onde ficava o tal sítio.
- “É bem longe, doutor, lá no fundão do bairro da Grota.”

O Dr. Roberto, já refeito do susto, comandou a equipe.
- “Dona Suzana, a senhora vai de táxi com o Zezinho, o mais rápido possível. Chegando lá, diga para a Maria que ela e o bebê precisam voltar imediatamente para o hospital, mas não diga o motivo. Senão, ela pode não querer vir.”

Os dois partiram apressados. Para o Dr. Roberto, seguiu-se uma terrível espera. Após três horas intermináveis, a angústia começou a se desfazer.

Zezinho dirigiu tão rápido e teve tanta sorte, que chegou ao sítio Barra Pesada ainda antes mesmo da Maria. Ao chegar, ela já encontrou na porteira da propriedade a enfermeira Suzana, que fez como o Dr. Roberto determinara. Maria ficou curiosa, mas nada perguntou e aceitou de bom grado voltar ao hospital.

Quando já estavam todos reunidos na Santa Casa, o Dr. Roberto explicou para Maria e Joana o que havia acontecido. Preocupado, ele observava o semblante das duas tentando antecipar as reações. Para sua surpresa, não houve nenhum drama. Joana, a paciente que ficou no hospital, foi a primeira a falar.

- “Bem que eu reparei que o meu menino, que é cabeludo, tinha ficado careca de repente! Eu estava preocupada era com a queda de cabelo, até achei que fosse coisa ruim, mas agora fiquei tranqüila.” Já a Maria olhou bem para os dois bebês e disse: – “Eu também achei que tinha algo errado, o meu bebê estava muito diferente, mas não sabia o que era!”

Troca desfeita, Dr. Roberto respirou aliviado e pôde voltar aos graves problemas que tinha para resolver. Não sem antes pensar que só mesmo pessoas simples e boas poderiam aceitar o acontecido sem criar outros problemas. Como disse Chico Buarque, “é gente humilde, que vontade de chorar…”

Fim. Final feliz?  Para as mães e seus bebês, sim. Mas para o Dr. Roberto, a história não seria assim tão simples.

Apesar de todas as provas, após dois anos, todos os envolvidos no processo da Santa Casa foram absolvidos.

Dr. Roberto trabalhou duro no hospital durante todo esse tempo, mas continuou sendo ameaçado, bem como seus familiares. Por duas vezes escapou de atentados contra sua vida. Até que, não suportando mais a pressão, mudou-se com sua família para outra cidade, onde foi trabalhar na Maternidade Bom Parto.

A impunidade, nossa velha conhecida, triunfou mais uma vez…

Ruy do Amaral Pupo Filho
Pediatra, Sanitarista e Escritor

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